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A segunda chance - parte XIV

Ao virar-me, vi que era o Rui quem chamava aquele nome. Não queria que me visse se acordasse nem tão pouco que soubesse da minha presença ali enquanto chamava outro nome que não o meu. Pensando bem, não tinha de o fazer. Mas eu sonhara alto, demasiado alto para um mundo tão real.
Procurei uma enfermeira e apressei-me a relatar o que havia presenciado para que, de imediato, o assistisse. Saí dali a correr. Fizera a minha parte, queria-lhe bem e, certamente, tudo correria bem dali em diante. O Rui voltaria a correr no parque, às suas rotinas e à sua vida independente. A partir dali, eu esqueceria qualquer mistura de sentimentos entre dois vizinhos carentes. Queria apenas vê-lo sorrir como dantes.
Não voltei a visitá-lo, a vê-lo. Até à semana seguinte, a um dia de intenso stress doméstico. Passara a manhã em limpezas; com a ajuda de um escadote, trepara paredes para chegar às prateleiras mais altas da sala e aos candeeiros do tecto. Queria tudo a brilhar; cada cristal, cada biblô daquele espaço, enorme e poeirento nos seus mais pequenos recantos. Em grandes sacos, colocara resmas e resmas de papéis, de bonecos estragados e de outros objectos esquecidos que, aos poucos, me iam enchendo a casa. Colocara pilhas de roupa na máquina de lavar e arrumara toda e qualquer peça fora do sítio.
A casa começava a ganhar outro brilho...não tanto desde que despedira a empregada que, por capricho teu, mantivera connosco durante anos. 
De tempos a tempos, ia colocando para trás da orelha alguns cabelos já soltos daquele meu rabo de cavalo desleixadamente caído sobre a nuca. Precisava de um banho relaxante depois daquele reboliço. 
Depois de pegar nos cortinados estendidos na varanda, encaminhei-me até à sala para os colocar de novo nos varões. Até àquele dia nunca havia tomado noção do seu peso. Quase caíra ao segurá-los! 
A meio daquela longa caminhada, a campainha soara. Carregada e aborrecida por alguém me atrapalhar naquele momento, fui abrir a porta.
- Bom dia! Desculpe incomodá-la, eu sei que não nos conhecemos mas não podia deixar de lhe agradecer o que fez por mim.
Ficara sem reacção e quase deixara de sentir os membros. Era o Rui, aparentemente confuso e com um enorme ramo de gerberas amarelas na mão. Não sabia que lhe dizer naquele momento. Esquecera-se de mim?
- Bom...nós na verdade conhecemo-nos...não se lembra?
- Ehhh...creio que não. A minha irmã descobriu que era minha vizinha e que me visitou várias vezes no hospital. Obrigado, não precisava de se incomodar comigo. Como se chama mesmo?
Era real. Esquecera-se de mim, de tudo. O coma deixara-lhe sequelas difíceis de ultrapassar e agora, ambos éramos novos seres humanos, um para o outro. Tal como um bebé que nasce desformatado do mundo e da vida, era preciso voltar a formatá-lo quanto às suas memórias recentes. Também eu esqueceria tudo. A sua saúde estaria em primeiro lugar.

Comentários

  1. Ouvi o vento e a música
    Procurando um porto na madrugada
    Ouvi a chegada de um navio
    Julguei sentir uma voz amada

    Meu Armando, meu amor...
    Uma criança jogando lama ao meio dia
    Embrenhada e perdida na alma
    Com rimas colorindo pálpebras de nostalgia

    Doce beijo

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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