Meia-noite, domingo. Mais um dia normal dentro da normalidade possível que é estar fechada em casa, à espera que o tempo passe, enquanto a vida teima em não acontecer lá fora.
É um misto de sentimentos; o desejo de que a Primavera chegue em pleno para que os pássaros cantem de manhã à noite e uma vontade inconsciente de que a chuva e o céu triste fiquem por aqui até que, finalmente, se possa sair à rua sem receio de falar, tocar ou chegar perto de quem gostamos ou de, simplesmente, trocar dois ou três dedos de conversa com a funcionária do supermercado.
Seja quando for esse tão desejado regresso à vida normal, já nada vai ser normal. O medo, esse, vai permanecer durante muito tempo até que nos sintamos de novo seguros ao pisar o chão que todos pisam, ao frequentar lugares que todos frequentam, ao viver sem máscaras, luvas e más notícias.
Quando não estou ocupada, invento para me ocupar. A rotina é, agora, mais rotineira do que nunca; dantes, sair de casa para trabalhar era apenas semelhante de dia para dia. Não passávamos exatamente pelo mesmo número de carros no nosso trajeto, os semáforos nem sempre estavam da mesma cor e havia sempre uma ou outra buzinadela menos simpática. Hoje, os semáforos estão desligados, o trajeto desde o quarto até à frente do computador é mais do mesmo e ninguém buzina ou resmunga...as estradas estão vazias, dando lugar a uma paz podre.
A natureza vai-se mostrando tal como é, sem humanos que interrompam as tarefas diárias dos melros felizes, dos besouros rodopiantes, das lagartixas apressadas ou dos gatos vadios e, só por isso, a nossa quarentena e esta ausência de egoísmo já terão valido a pena. A rua cheira a rua, a flores, a pureza, não a combustível e a indústria como dantes, esse antes ainda aqui tão perto.
Os fins de tarde, agora mais longos, são sempre diferentes na medida do possível. Ora no quintal, ora em casa, tento focar-me no desporto, do qual, até hoje, fugia a sete pés. Agora, sempre que posso, fujo a sete pés da inércia que é estar em frente a um computador, a dois passos do frigorífico.
Quando corro, penso no quão ridícula sou, a correr para lugar nenhum quando queria demais correr correr para o pé de ti, meu amor. Penso nas caminhadas na natureza que, juntos, poderíamos fazer e nos dias que ainda irei correr sozinha sem chegar até ti, o tão desejado destino. Penso nos nossos planos a curto prazo, nas viagens e nos passeios e na falta que me fazem para manter a cabeça sã, focada num ou noutro plano que vá iluminando os meus passos, como uma candeia acesa em cada encruzilhada. Os planos, adiados, parecem estar lá longe, ainda tão longe, na penumbra dos dias, que tenho receio que algum de nós sucumba ao vagar do destino, à ausência, à saudade e que, a pouco e pouco, nos falte o ar numa quase apneia que nos suspende a vida, com o futuro a acenar lá longe do que a vista alcança.
Que o oxigénio nos chegue para respirar até que um abraço nos tire o fôlego, meu amor. Que o que nos une seja, para sempre, uma espécie de imunidade. Um lugar à prova de bala.
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